viernes, 25 de abril de 2014

Águas-fortes portenhas

Por Roberto Arlt.
20/12/1929
O idioma dos argentinos

O senhor Monner Sans, numa entrevista concedida a um repórter de El Mercurdio, do Chile, nos alacraneia da seguinte forma:
“Na minha pátria nota-se uma curiosa evolução. Ali, hoje ninguém defende a Academia nem sua gramática. O idioma, na Argentina, atravessa momentos críticos... A moda do “gauchesco” passou; mas agora pricipia-se outra ameaça, está em formação o “lunfardo”, léxico de origem espúria, que se introduziu em muitas camadas sociais mas que só encontrou cultivadores nos bairros excêntricos da capital argentina. Felizmente, realiza-se uma eficaz obra depuradora, na qual acham-se empenhados altos valores intelectuais argentinos”.
Chega de lorota! Como vocês gramáticos são! Quando eu cheguei ao final da sua reportagem, isto é, a essa frasezinha: “Felizmente realiza-se uma obra depuradora na qual acham-se empenhados altos valores intelectuais argentinos”, comecei a rir a valer, porque me lembrei de esses “valores” não são lidos nem pelas famílias, de tão chatos que são.
Que le lhe diga outra coisa? Temos um escritor aqui -não lembro o nome- que escreve em puríssimo castelhano e para dizer que um senhor comeu um sandwich, operação simples, agradável e nutritiva, teve que empregar todas estas palavras: “e levou à boca um pão fatiado com presunto”. Não me faça rir, está bem? Esses valores, aos quais o senhor se refere, insisto: não são lidos nem pela família. São senhores de camisas com colarinho duro, voz grossa, que esgrimen a gramática como um bastão, e sua erudição como um escudo contra as belezas que adornam a terra. Senhores que escrevem livros de texto que os alunos se apressam em esquecer assim que deixarem as aulas, nas quais são obrigados a espremer os miolos estudando a diferença que há entre um tempo perfeito e ourto mais-que-perfeito. Estes cavalheiros formam uma coleção pavorosa de “pancudos” -me permite a palavreca?- que quando se deixam retratar, para aparecer num jornanl, têm o cuidado de se colocar ao lado de uma pilha de livros, para que se comprove de cara que os livros que escreveram somam uma altura maior do que a que medem seus corpos.
Querido senhor Monner Sans: A gramática se parece muito com o boxe. Eu vou explicar:
Quando um senhor, sem condições, estuda boxe, a única coisa que faz é repetir os golpes que o prodessor lhe ensina. Quando outro senhor estuda boxe, e tem condições e faz uma luta magnífica, os críticos do pugilismo exclaman: “Esse homem tira golpes de “todos os ângulos!” Quer dizer, que, como é inteligente, escapa-lhe por uma tangente a escolástica gramatical do boxe. Não é exagerado dizer que este que escapa da gramática do boxe, com seus golpes de “todos os ângulos”, acaba com a alma do outro, e dali que já faça escola essa nossa frase de “boxe europeu ou de salão”, isto é, um boxe que serve perfeitamente para exibições, mas para lutar não serve de jeito nenhum, ao menos diantes dos nossos garotos antrigramaticalmente boxeadores.
Com os povos e o idioma, senhor Monner Sans, acontece a mesma coisa. Os povos bestas se perpetuam em seu idioma, como se, não tendo idéias novas que expressar, não necessitem de palavras novas ou variantes estranhas; mas, em compensação, os povos que, como o nosso, estão em contínua evolução, tiram palavras de todos os lados, palavras que indignam os professores, como indigna a um professor de boxe europeu o fato inconcebível de que um garoto que boxeia mal acabe com a alma de um alumno seu que, tecnicamente, é um perfeito pugilista. Isso sim; me parece lógico que vocês protestem. Têm direito a isso, já que ninguém lhes dá bola, já que vocês tem tão pouco discernimento pedagógico de não perceber que, no país onde vivem, não podem obrigar a gente a dizer ou escrever: “levou à boca um pão fatiado com presunto”, em vez de dizer: “comeu um sandwich”. Eu aposto a minha mãe como o senhor, na sua vida cotidiana, náo diz: “lovou à boca um pão fatiado com presunto”, mas que, como todos, diria: “comeu um sandwich”. Não é preciso dizer que todos sabemos que um sandwich se come com a boca, a menos que o autor da frase haja descoberto que também se come com as orelhas.
Um povo impõe sua arte, sua indústria, seu comércio e seu idioma por prepotência. Nada mais. O senhor veja o que acontece com os Estados Unidos. Mandan-nos seus artigos com rótulos em inlgês, e muitos termos ingleses nos são familiares. No Brasil, muitos termos argentinos (lunfardos) são populares. Por quê? Por prepotência. Por superioridade.
Last Reason, Félix Lima, Fray Mocho e outros influíram muito mais sobre nosso idioma do que todas as bobagens filológicas e gramaticais de um senhor Cejador e Frauca, Benot e todo o bando empoeirado e mal-humorado de ratos de biblioteca, que a única coisa que fazem é remexer arquivos e escrever memórias que nem vocês mesmos, gramáticos insignes, se incomodan em ler, de tão chatas que são.
Este fenômeno nos demonstra até a saciedade o absurdo que é pretender engessar numa gramática canônica, as idéias sempre mutantes e novas dos povos. Quando um malandro que vai dar uma punhalada no peito de um comparsa, diz a ele: “vou te vou te enfiar a faca nas costelas, é muito mais eloquente do que se dissesse: “vou colocar minha adaga no seu esterno”. Quando um meliante exclama, ao ver entrar um bando de meganhas: “espionei eles de esguelha, é muito mais gráfico do que se dissesse: “às escondidas examinei os agentes policiais”.
Senhor Monner Sans: Se levássemos em conta a gramática, teriam que tê-la respeitado nossos tataravós e, em progressão regressiva, chegaríamos à conclusão de que, se aqueles antepassados tivessem respeitado o idioma, nós, homens do rádio e da metralhadora, falaríamos ainda o idioma das cavernas. Seu modesto servidor.
Q.B.S.M

Tradução: Maria Paula Gurgel Ribeiro

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