Por
Roberto Arlt.
20/12/1929
O idioma dos
argentinos
O senhor Monner
Sans, numa entrevista concedida a um repórter de El Mercurdio,
do Chile, nos alacraneia da seguinte forma:
“Na
minha pátria nota-se uma curiosa evolução. Ali, hoje ninguém
defende a Academia nem sua gramática. O idioma, na Argentina,
atravessa momentos críticos... A moda do “gauchesco” passou; mas
agora pricipia-se outra ameaça, está em formação o “lunfardo”,
léxico de origem espúria, que se introduziu em muitas camadas
sociais mas que só encontrou cultivadores nos bairros excêntricos
da capital argentina. Felizmente, realiza-se uma eficaz obra
depuradora, na qual acham-se empenhados altos valores intelectuais
argentinos”.
Chega
de lorota! Como vocês gramáticos são! Quando eu cheguei ao final
da sua reportagem, isto é, a
essa frasezinha: “Felizmente realiza-se uma obra depuradora na qual
acham-se empenhados altos valores intelectuais argentinos”, comecei
a rir a valer, porque me lembrei de esses “valores” não são
lidos nem pelas famílias, de tão chatos que são.
Que
le lhe diga outra coisa? Temos um escritor aqui -não lembro o nome-
que escreve em puríssimo castelhano e para dizer que um senhor comeu
um sandwich, operação simples, agradável e nutritiva, teve que
empregar todas estas palavras: “e levou à boca um pão fatiado com
presunto”. Não me faça rir, está bem? Esses valores, aos quais o
senhor se refere, insisto: não são lidos nem pela família. São
senhores de camisas com colarinho duro, voz grossa, que esgrimen a
gramática como um bastão, e sua erudição como um escudo contra as
belezas que adornam a terra. Senhores que escrevem livros de texto
que os alunos se apressam em esquecer assim que deixarem as aulas,
nas quais são obrigados a espremer os miolos estudando a diferença
que há entre um tempo perfeito e ourto mais-que-perfeito. Estes
cavalheiros formam uma coleção pavorosa de “pancudos” -me
permite a palavreca?- que quando se deixam retratar, para aparecer
num jornanl, têm o cuidado de se colocar ao lado de uma pilha de
livros, para que se comprove de cara que os livros que escreveram
somam uma altura maior do que a que medem seus corpos.
Querido
senhor Monner Sans: A
gramática se parece muito com o boxe. Eu vou explicar:
Quando
um senhor, sem condições, estuda boxe, a única coisa que faz é
repetir os golpes que o prodessor lhe ensina. Quando outro senhor
estuda boxe, e tem condições e faz uma luta magnífica, os críticos
do pugilismo exclaman: “Esse
homem tira golpes de “todos os ângulos!” Quer dizer, que, como é
inteligente, escapa-lhe por uma tangente a escolástica gramatical do
boxe. Não é exagerado dizer que este que escapa da gramática do
boxe, com seus golpes de “todos os ângulos”, acaba com a alma do
outro, e dali que já faça escola essa nossa frase de “boxe
europeu ou de salão”, isto é, um boxe que serve perfeitamente
para exibições, mas para lutar não serve de jeito nenhum, ao menos
diantes dos nossos garotos antrigramaticalmente boxeadores.
Com
os povos e o idioma, senhor Monner Sans, acontece a mesma coisa. Os
povos bestas se perpetuam em seu idioma, como se, não tendo idéias
novas que expressar, não necessitem de palavras novas ou variantes
estranhas; mas, em
compensação, os povos que, como o nosso, estão em contínua
evolução, tiram palavras de todos os lados, palavras que indignam
os professores, como indigna a um professor de boxe europeu o fato
inconcebível de que um garoto que boxeia mal acabe com a alma de um
alumno seu que, tecnicamente, é um perfeito pugilista. Isso sim; me
parece lógico que vocês protestem. Têm direito a isso, já que
ninguém lhes dá bola, já que vocês tem tão pouco discernimento
pedagógico de não perceber que, no país onde vivem, não podem
obrigar a gente a dizer ou escrever: “levou à boca um pão fatiado
com presunto”, em vez de dizer: “comeu um sandwich”. Eu aposto
a minha mãe como o senhor, na sua vida cotidiana, náo diz: “lovou
à boca um pão fatiado com presunto”, mas que, como todos, diria:
“comeu um sandwich”. Não é preciso dizer que todos sabemos que
um sandwich se come com a boca, a menos que o autor da frase haja
descoberto que também se come com as orelhas.
Um
povo impõe sua arte, sua indústria, seu comércio e seu idioma por
prepotência. Nada mais. O senhor veja o que acontece com os Estados
Unidos. Mandan-nos seus artigos com rótulos em inlgês, e muitos
termos ingleses nos são familiares. No Brasil, muitos termos
argentinos (lunfardos) são populares. Por quê? Por prepotência.
Por superioridade.
Last
Reason, Félix Lima, Fray Mocho e outros influíram muito mais sobre
nosso idioma do que todas as bobagens filológicas e gramaticais de
um senhor Cejador e Frauca, Benot e todo o bando empoeirado e
mal-humorado de ratos de biblioteca, que a única coisa que fazem é
remexer arquivos e escrever memórias que nem vocês mesmos,
gramáticos insignes, se incomodan em ler, de tão chatas que são.
Este
fenômeno nos demonstra até a saciedade o absurdo que é pretender
engessar numa gramática canônica, as idéias sempre mutantes e
novas dos povos. Quando um malandro que vai dar uma punhalada no
peito de um comparsa, diz a ele: “vou te vou te enfiar a faca nas
costelas, é muito mais eloquente do que se dissesse: “vou colocar
minha adaga no seu esterno”. Quando um meliante exclama, ao ver
entrar um bando de meganhas: “espionei eles de esguelha, é muito
mais gráfico do que se dissesse: “às escondidas examinei os
agentes policiais”.
Senhor
Monner Sans: Se levássemos em conta a gramática, teriam que tê-la
respeitado nossos tataravós e, em progressão regressiva,
chegaríamos à conclusão de que, se aqueles antepassados tivessem
respeitado o idioma, nós, homens do rádio e da metralhadora,
falaríamos ainda o idioma das cavernas. Seu modesto servidor.
Q.B.S.M
Tradução:
Maria Paula Gurgel Ribeiro
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-12042002-115005/pt-br.php